11/28/2008

Conversa de Qualquer Esquina

- ...existe um estado de percepção muito mais profundo, de uma profundidade tamanha que você se liga quase que misticamente aos signos, e eu acredito piamente que quando Blake disse sua célebre frase sobre as portas da pecepção, era justamente sobre esta semântica que emana de tudo, mas principalmente da obra de arte, e que nós, quando estamos corriqueiros, não podemos perceber, a que ele se referia; ora, é justamente quando entramos no estado de apreciação que aprendemos novas palavras e tornamos outras mais belas, parafraseando Drummond, mas existe um estado ainda mais profundo de ligação com os sentidos, e eu poderia bem dizer que é um estado de comunhão, sim, com o peso de sagrado que a palavra comunhão tem, com um outro nível da linguagem, um nível tão abissal que de inacessível nos dá a impressão, quando nós estamos comungados, que é uma sabedoria tão antiga e tão pura, que se perdeu há muitas eras, naqueles tempos em que nós cultuávamos e cultivávamos outros deuses, deuses próximos, que caminhavam entre os humanos normais, e eu prometo a você que, se nesse estado você se deparar por exemplo com a Nona Sinfonia, e ela merece toda a ênfase que eu possa dar, você vai entender esse sentimento de um dia, numa caminhada no campo, ou durante a colheita, deparar-se com um deus bondoso, sábio e ao mesmo tempo tão humano quanto você e paradoxalmente muito superior a você, quer dizer, você ouve algo como a Quinta Sinfonia e já é uma realização quase inimaginável, a grande maioria de nós nunca vai chegar perto de realizar algo tão grande, e aqueles que realizarem algo que esteja no mesmo patamar podem ter sua existência chamada de excelentíssima, ela faz uma existência valer a pena, e ainda assim existe esse outro patamar em que está a Nona Sinfonia, de que você, em estado corriqueiro, pode extrair grande deleite, mas num estado de comunhão com os signos mais ocultos do universo, a única conclusão possível é que não tem maneira tal que isso possa ter sido concebido por mãos humanas, e ainda assim ela existe, e eu juro, você vai ouvir Cio da Terra com todas as vozes do Milton Nascimento, e por mais estranho e herético que isso possa lhe parecer agora, você vai perceber que essa é uma obra de arte que está no mesmo patamar que uma Nona Sinfonia, porque nos coloca em contato com o mesmo Belo, este belo que está sob o signo do infinito, mas não tem maneira de você saber o que é infinito agora, porque por mais que eu me esforce, que eu use as palavras que eu sei, e aprenda novas, e torne as minhas mais bonitas, aquilo que é infinito é incomunicável, e no fundo é isso que esta percepção mais profunda é: um conhecimento do incomunicável.

- Pode ser, mas não adianta, eu não vou pagar o preço de dois pra um nisso aí não. Vai ser o dobro do esforço e do tempo preu ficar balão assim, e se pá nem. Então se você quiser que eu fique com essa bucha, pelo menos me dá meu troco.

11/05/2008

Regina Spektor - Bon Idée

Bon Idée ilustra o que é o Songs pra mim. Tem o esmero fudido que eu sempre espero da Regina na parte musical. Coisa de quem sabe cantar, de quem sabe tocar, de quem sabe compor e de quem sabe escrever; de quem é excelente musicista e algo mais.Musicalmente, porque é um passo a frente em relação ao 11:11. No primeiro CD, as influências de jazz, e principalmente blues, estão na cara, óbvias de serem reconhecidas nos temas musicais e nas letras. Aqui elas estão mastigadas, incorporadas ao repertório de tal maneira que elas parecem fazer parte da própria Regina. Tem uma mistura de música popular, jazz e erudita no piano tão amalgamada que é uma quarta coisa. Não é pop, não é jazz, não é erudita; é essa dificuldade de encaixar num rótulo musical que a faz a gente gritar "meu deus, o nome disso é Regina Spektor".O mesmo com a voz: tem um arrastar, um drive disfarçado, um sussurro, um cuidado em esconder o cuidado. O grande trabalho hercúleo de parecer que não é trabalho nenhum. Tem aquele jeitinho de Lady que ela iria homenagear só dali alguns anos, mas tem uma outra coisa, uma força diferente e uma outra suavidade e tristeza, muito diferentes das suavidade e tristeza recebidas como influências e que estavam escancaradas no trabalho anterior.E a letra, que é quase poesia. Tem a repetição de love, uma repetição que esgota o sentido da palavra e a torna não uma unidade de sentido, mas um elemento ritmo e melódico. Essa repetição que vai aparecer depois no Soviet Kitsch, levada ao extremo em Carbon Monoxide, por exemplo. E, no plano do sentido, tem aquele algo muito peculiar dos artistas de tradição judaica: o pensamento religioso agudo, que desconfia do próprio Deus, e é a pedra de toque de entender e pensar todo o resto, mesmo que já não se tenha nada a ver com Deus ou nem sequer se acredite nele.E, por fim, é o mais abandonado dos álbuns, pela sua dificuldade. Ele tem a aridez de um deserto, e por isso estamos sempre nos atrevendo a desviar por outros caminhos, reclamando de dividir nossa sobremesa.

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