12/17/2006

Desatualidades

Sabe assim, quando você encontra um qualquer, que na época parecia uma boa idéia, mas passou do tempo? Pra você, não é mais uma idéia que lhe venha todas as noites, então pra que falar nisso? Pros outros, o mundo caminhou, e ele acabou ficando desatualizado, velho mesmo. Mas a gente é coisa desquieta, não sabe não mostrar pra ninguém. Então taí.

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Caminhava Deus pelo universo, já meio enfadado de todo aquele equilíbrio caótico. É verdade que havia se esmerado muito na criação, planejado e executado minuciosamente cada detalhe, rodado diversos protótipos e finalmente conseguira programar uma linguagem fisico-química-bio-matemática que ao ser utilizada em larga escala não fizesse mais aquele ruído pãm agudo e travasse algum setor, e que todo o esforço lhe rendera muito prazer e júbilo. O resultado era aquela interação perfeita em todos os planos e dimensões da existência, do mais pedregulhoso ao mais quântico, e quando Ele digitou o último ponto, olhou para tudo e sentiu consigo mesmo “Ficou do caralho!”. Então ficou descansando no sábado (ou no domingo, que é canonicamente o dia de ficar no sofá), sentado em sua confortável poltrona ouvindo a música que a criação lhe cantava em louvor e glória, e pensou que poderia estar ali por bilhares de anos – afinal, em sua onisciência sabia que nada sairia do lugar e o disco continuaria rodando enquanto sua graça permitisse. O diacho do programa era mesmo bom, executava tudo conforme a sua vontade, não precisava nem clicar em nada. Mas agora ele já havia ouvido a mesma música de todas as maneiras, durante bilhões e bilhões de anos sentado no sofá, e estava cansado. Já não era aquele jovem que se rejubilava com programação e re-criação. Os cabelos e a barba estavam compridos e acinzentados, e a barriga já não tinha a firmeza dos tempos primeiros, embora ele ainda fosse um coroão pegável. Muito mais que pegável: enxuto. Gostoso. Estava experiente, era essa a verdade. Experiente e entediado, e por isso caminhava pelas distantes paragens do universo com a onisciência meio distraída, pra, quem sabe, deixar-se surpreender.

Foi quando num cantinho da periferia ele a viu, vigiada pelo seu brilhante pai e seus oito irmãos (bom, há quem diga que são mais que nove filhos, mas no papel mesmo até hoje ela tem só oito irmãos, embora recentemente um tenha entrado com um pedido de exame de paternidade, e isso tenha acendido toda uma polêmica, porque se esse baixinho aí não é, então aquele lá mais frio e distante também não é.). Ela era bem novinha, muito mais nova que todos aqueles que habitavam o centro, ainda era virgem e intocada, descoberta de qualquer vegetação, mas Deus percebeu todo o seu potencial. E, apesar de novinha, ela já era redondinha, e ele podia perceber sua trajetória meio elíptica. Mas não quis pensar nisso, onde já se viu criador perceber essas coisas na criação? Resolveu passear por outros lados, os mais claros, os mais escuros. E todos vocês que já se apaixonaram, se viciaram, se aficcionaram por alguma coisa na vida podem imaginar o que aconteceu. Se isso nunca aconteceu com você, ou tá apenas fingindo que não, eu lhe digo ou refresco a memória. Lá do outro lado ele tentava se distrair. Olhava uma estrela aqui, um meteoro acolá, mas quando deixava o pensamento ir mesmo longe de repente se pegava pensando lá naquela distância toda que ela tava. Já havia órbitas maiores, mais maduras, mas qualquer movimento mais ou menos circular, qualquer forma mais arredondada, tudo isso levava seu pensamento para as curvas dela.

Decidiu criar novamente, isso sim lhe entreteria. Pensou em seres estranhos, pra chocar mesmo, meio gelatinosos. Depois foi mentalmente planejando variantes e variantes, e em pouco tempo estava como aqueles adolescentes e adolescentes tardios, ou essa gente que a gente chama de nerd retardado mesmo: tinha criado uma lista enorme de criaturas absurdas, desde mini-insetos de seis patas até lagartos enóóóórmes e carnívoros. Precisava só de um lugar pra instalar tudo aquilo. Havia por aí muitos cantinhos vazios esperando uma povoação, mas como decidir? Pensou nos dados, mas não ficava bem pra ele, e depois essa coisa de acaso sempre dá besteira. Decidiu assim como quem não quer nada que iria lá praquele cantinho seco, abandonado, faminto. Levaria um pouco de vida praquele sistema solar, e não tinha nada a ver com o planetinha que lhe chamou a atenção, era porque precisava mesmo, sou um Deus crescido, adulto, sei muito bem o que quero, pra isso que serve a onisciência, todo mundo sabe. E depois, quem disse que tinha que brotar nela? Podia ser em qualquer um dos outros oito, até mesmo no pai. Decidido voltou pra lá, conversar com a família toda e fazer as proposições e estudos necessários.

Pensou primeiro em instalar tudo no pai, no centro, mas o velho era de altas temperaturas e de muita gravidade, não ia combinar. Havia dois irmãos que tinham um bom tamanho, mas eram muito chegados ao pai. Outros eram grandes demais, muito frios, ou ambos. Sem contar os gases fedorentos, pegaria muito mal, e ninguém gosta do gordão peidorrero, eles sempre são alvo dos colegas de classe. Diz até que ele chegou a tentar instalar num irmão mais parecido com ela, avermelhado, só que o moleque não era bem adequado pressas coisas. Diz também que ficaram uns resquícios, mas o talzinho preservou todas as suas características depois. Sendo isso verdade ou só falação das línguas-más ninguém até hoje sabe, o que importa é que no fim das contas o projeto cabia como uma luva para ela. E ele já amava tanto aquele plano que não podia se desfazer só por um detalhezinho. A solução seria praticar o autocontrole e fim da história. E esse pinguinho aí atrás seria o ponto-final se Deus fosse budista na época, ou estóico. Ninguém nem sabe quando passou de nu-artístico para pornografia, mas o que dizem é que o espírito de Deus ficou se movendo sobre a face das águas dela. Puro eufemismo, ele se refestelou mesmo. Foi tirando as roupinhas dela, e depois a face dele que sim, se moveu por sobre e sob as umidades dela. E não foi só a face não, foi de corpo todo. Se alguém objetar que foi apenas a cabecinha, só digo que isso é coisa que não tem pescoço.

No começo ele vinha todos os dias, e passava muitas horas com ela, de maneira que tudo era mágico. Viviam quase que em comunhão, e tudo floria e florescia, e a instalação ia sendo feita bem aos pouquinhos, pra mor de se aproveitar melhor o processo, e ficar sentindo o gosto por vários tempos. E talvez tenha sido esse o problema, ou talvez tenha sido o ciúme de quando o moleque nasceu, porque vocês sabem como são essas coisas. Homem é bicho ciumento; não importava que o bichim fosse a cara do pai, mas O incomodava muito que ela tivesse que voltar quase todas as suas energias pras crianças. Não digo que Ele não as amava, nem pense nisso, muito pelo contrário. O que ele queria era pra Si o amor de ambos, dela e dele, sem restrições. Mas, diacho, cada dia que passava ela madurecia, ficava mais encorpada, perdia aqueles traços de planetinha que começou a girar um dia desses, e justamente por que bem no melhor da coisa teríamos de dividir? E num piscar de olhos os bacurizinhos já tavam na aborrescência, queriam resolver tudo sozinhos, sem se resportar a Ele. Achou engraçado, um absurdo, como é que pode uma coisa dessas? Depois, enfadou-Se. Enquanto eles ainda pensavam comé que fariam pra viver sem Ele, Ele já tinha ido se distrair noutras paragens. Ninguém não viu nem nada, nem sabe muito bem quando foi. Eu diria que a paixão foi esfriando, entediou, pegou estranheza, fastio, enfado e chegou ali no quase-ódio. Mas essa é teoria muito minha, tanto que parece que as palavras tem significado que só eu entendo, dado somente por mim. Enfim, de repente que eu to imitando o Velho.

E o Velho? Se finge que não volta não. Às vezes aparece só pra deixar um ou outro de castigo, mas sem critério nenhum, só pra dizer que Ele é o pai; embora não esteja presente, quem manda é ele. Gosta ainda muito dela, talvez até goste dos filhos, mas não sabe viver sem ser exclusivo. Então fica observando, de longe, só co rabo do olho da onisciência. E paga a pensãozinha, que é pra gente ir sobrevivendo.

E pra não ter que entrar no pau.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

num da hein?
tem q ser menoooooor...

4:26 AM  
Blogger Fabi said...

uhm,no começo eu pensei: ''emi vai partir pra putaria explicita de deus com a menina da periferia..que tesão esta heregia!''
depois eu vi que era mais um dos seus textos bonitinhos,que a gente lê do mesmo jeito que come bolo de chocolate..aos poucos e sem pressa.:)

eu adorei a idéia!
ps2: emi,bolo de chocolate frio É MUITO BOM! bjos!

6:49 PM  
Anonymous Anônimo said...

Caramba, afinal ficou muito bom mesmo!
As coisas vão se revelando espertamente, aos poucos, e a leitura flui num ritmo todo gostoso...
Mas não me venha com "desatualidades", porque essa sua estória com Deus é a estória daquele outro com o emplastro, eu sei.
É tudo de uma concepção interessantíssima. Mefistofélico!
Haha.
Enfim... três vivas para nós e tudo o que existe, filhos-abandonados de um sexo celestial!


PS: Consegui destoar daqueles outros dois?! =P

6:29 PM  
Blogger Emil said...

A merda é que é verdade. Hoje eu reli uns trechinhos quase-nada de Grande Sertão e só consegui pensar em Deus e o Diabo um bom par de horas. Mas eu juro que não credito nenhum dos dois.

6:56 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito, muito bom!

Melhor parte:
"Os cabelos e a barba estavam compridos e acinzentados, e a barriga já não tinha a firmeza dos tempos primeiros, embora ele ainda fosse um coroão pegável. Muito mais que pegável: enxuto. Gostoso. Estava experiente, era essa a verdade."

\o/

8:42 PM  

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