10/22/2006

Entrada para a massa

Eis que qualquer dia andando pela cidade, já não lembro se vi num outdoor ou num nick de MSN - mas é fato de que vi nos dois, só não sei o que veio primeiro - ouço falar de um conjunto chamado O Teatro Mágico. Da sua proposta, ouvi dizer que mesclava teatro, poesia e circo numa apresentação musical. É claro que me interessei, afinal, seria uma proposta interessante de vida no meio do marasmo estéril da cidade. Então fui atrás, e após assistir uma apresentação, pesquisar no site do conjunto e ouvir atenciosamente o álbum, cheguei à conclusão de que eu deveria lembrar sobre a célebre recomendação de Schopenhauer sobre a arte de ler bons livros.

A primeira ressalva que eu devo fazer, e assim adianto a contra-argumentação básica, é que não é ruim, ou não é de todo mau. Mas não posso dizer que é bom. Os defensores dirão que é melhor do que muito do que há por aí, e eu poderei responder: de fato, é mesmo; no entanto, considerando o que há por aí, isso não constitui grande mérito. E a não-excelência é o grande pecado do conjunto; essa não-virtude que seria para qualquer outro, se não bem aceitável, ao menos compreensível. Perguntar-me-ão os que me estão a ler por qual motivo considero a não-excelência o erro fatal do conjunto. Respondo rapidamente: por causa da proposta do próprio grupo, estampada em seu site, em seus adesivos, na voz de Fernando Anitelli. O Teatro Mágico: Entrada para Raros.

A quem observa a platéia dO Teatro não escapa o pensamento: “Hoje eles devem ter aberto para o público geral. Porque raridade eu não estou vendo nenhuma”. O público da banda é o mais do mesmo da juventude dos óculos de aro grosso, quando muito. Quando pouco, é o ecletismo indefinido comprador de tudo que recebe o selo ‘brasilidade’ – seja lá o que for isso. Os defensores então argumentarão que não se pode julgar a banda exclusivamente pelo público que a ouve, e eu concordarei em partes. Exclusivamente não se pode mesmo, mas minha argumentação é que a produção do teatro é direcionada para este público, e somente para este. Esqueçam a raridade, ela é só um chamativo pra quem quiser se sentir especial por ouvir um som cult.

A introdução homônima é uma promessa de cura pero poder do signo, agora divino. O controle da palavra é o controle da divindade, a manipulação do signo é a manipulação da própria realidade, interior e exterior. Promessa belíssima. Ainda há a introdução ao álbum, o texto Sintaxe à Vontade, que parece uma gotinha do que está por vir: a exploração máxima das possibilidades sintáticas da língua. O texto todo é recheado de brincadeiras sonoras, aproximação de sentidos opostos por fonemas próximos, que têm lá seu gosto, mas cadê a Sintaxe? A segunda introdução mata o que a primeira promete, o álbum assassina o que resta de esperança de ouvir algo diferente.

Os arranjos musicais não chamam a atenção. São um sem-sal a mais, que vão ao encontro das letras também insossas, que têm como recurso quase que exclusivamente a relação de aproximação de significados pela semelhança fonética. Claro que o recurso por si só não é condenável, mas a repetição à exaustão transforma a apresentação numa tentativa de caça ao melhor trocadilho. O interesse dO Teatro Mágico não é a poesia. A repetição da fórmula sonora engana o ouvido desatento, e, no que tange ao senso-comum, poderia ser considerada “poesia”. Mas se a entrada fosse para raros mesmo, o senso-comum mal deveria ser levado em consideração. No máximo, como meta de superação.

O principal inimigo dO Teatro é a atribulação, a correria dos nossos dias pós-modernos. Para resistir às agruras cotidianas, foram eleitos dois temas salvadores: o amor, esse velho desgastado, e uma religiosidade anti-pressa. O amor é o mesmo amor romântico de todos os tempos, o esperar no outro a completude de si, o velho tema que nunca sai de moda e encontra no coração ávido da juventude eco pra continuar se reproduzindo. É o tema mais propício pra transformar música em mercadoria, enfim. Como eu não me canso de repetir, e que fique bem claro, por si só não é defeito. Só não é raridade. A religiosidade é uma prece sem forma a uma força não declarada, algo assim para não assustar nem gregos, nem troianos. No fim, não encantam e também não servem pra fazer frente a força esmagadora do nada onipresente do cotidiano.

Talvez, a única exceção fique por conta de Zazulejo. É um olhar sobre o português não-padrão que aparenta ser bem compreensivo. Mas não deixa de ser a visão patronal, que se detém um pouco sobre esta modalidade para logo em seguida esquecer quase que completamente dela, e levar consigo só a religiosidade quase infantil que é identificada na fala do outro. É cruzar com o outro, perceber o outro, mas levar da experiência só aquilo que já é constituinte de si mesmo. Quem sabe se não é esse o meio pelo qual chegar ao ideal quimérico de “se junta tudo numa coisa só”. Ignora antes as diferenças e tenta apressadamente aglutinar o mínimo de semelhança presente, num processo que, a meu ver, só pode ser alienante e alienador.

Enfim, O Teatro Mágico só será do interesse de quem busca momentaneamente anestesiar os sentidos e o cérebro numa apresentação fragmentada entre música simples, letras simples, artes circenses, tudo ocorrendo ao mesmo tempo. Basta parar e prestar atenção, e não se encontrará muito mais que isso. Pode ser até que algum raro desavisado acabe indo assistir a uma apresentação (que tem hora de cantar junto, hora de rezar junto, hora de bater palma pra mesma poesia de sempre – apresentação com ordem decorada e repetida que os fãs saberão de cor), mas dificilmente você os encontrará novamente. É para abocanhar aquela fatia do mercado que o CPM 22 tem dificuldade de alcançar. Com alguma sorte, ou ambos estarão esquecidos dentro em breve, ou O Teatro encontra o rumo.

1 Comments:

Blogger Karina said...

Muito bom, muito bom!
Eu sempre digo que o Fernando Anitelli é uma caixinha de aforismos de nenhuma grandeza que cansou de contar apenas com os amigos palhaços e mãe para receber méritos estéreis...
(!)
Já as armações grossas, Emiliandros, têm apenas uma utilidade: extingüir a visão periférica.
Aí sim são dois caminhos...ou a indiferença, ou a parvice!

8:09 AM  

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