9/22/2006

A minha relação com o niilismo

Este texto carrega uma carga terrivelmente autobiográfica, já que o escrevo para mim. No entanto, qual escritor que deseja ser bom e não escreve para si próprio, que não carrega o texto de signos pessoais? Por menos biográfico que um texto se proponha, acredito que o bom texto, seja ele literário, científico (sim, mesmo o científico), filosófico, ou qualquer outro que apresente dificuldade em ser classificado, esteja sempre carregado de signos pessoais, que não necessariamente dizem respeito somente a quem escreve, mas ainda assim dizem muito a quem escreve. E talvez seja esse um dos fatores por trás de algo que eu não consigo, mas tenho buscado incessante e, até agora, infrutiferamente, entender, que é a vontade de criar – esse impulso que nos leva a compor, escrever, desenhar, etc.

Por que então chamo, até o presente momento, este texto de ‘A minha relação com o niilismo’? Entre as reflexões que me ocupam, uma vem ganhando notável espaço do meu esforço e do meu tempo: à medida que eu observo o mundo, cresce em mim uma forte impressão, ou uma forte percepção, de que quase toda a ação humana deságua num grande mar de vazio, e o fim do caminho o qual chamamos vida quase invariavelmente termina num absoluto nada. Ao mesmo tempo, o nada parece ser uma não-entidade ativa, engolidora, que se esforça para alcançar a onipresença.

Os quases a que me refiro são os grandes feitos, a única coisa capaz de nos aproximar da imortalidade. Se não nos tornam imortais, ao menos não nos deixam ser efêmeros. E rivalizam pelo posto de feitos entre os feitos a obra de Arte e a contribuição ao conhecimento, ao menos na minha visão. As conquistas ecoam muito, a Arte e a Filosofia duram indefinidamente. Aquiles é imortal, mas Homero é mais imortal.

A imortalidade, entretanto, não é mais um fator relevante para os do meu tempo. E em mim é forte a impressão de que o tempo dos imortais acabou; se há ainda alguém que deseja alcançar algo mais que o efêmero, esse alguém nasceu no século errado. A linguagem que domina as visões de mundo é a do presente inquieto, constituído de instantes de todas as cores do espectro, e os saltos não-gradativos do vermelho para o violeta são comuns. A imortalidade não faz nenhum sentido quando o valor máximo é o agora. Principalmente se o agora é tão estroboscópico que num instante de desatenção ele escapa pelos seus dedos.

Ao mesmo tempo, não existe uma referência, um movimento, qualquer coisa que possa servir ao menos de luz no fim do túnel. As religiões se tornam cada vez mais lugar da acefalia, do fanatismo, do obscurecimento e do doping. A esquerda é muito mais lenta que o capitalismo, e ainda discute a luta de classes quando na parte urbana do mundo a burguesia frígida venceu: todos querem fazer parte dela. Abraçar o que existe também não se mostra uma opção sensata, a não ser que o objetivo de vida seja viver anestesiado. Sobrou a constatação de que o nada engole paulatinamente o mundo, e a convicção de que nenhuma convicção vale a pena.

É aí que reside o paradoxo da opção pelo niilismo. A amoralidade pregada é somente um novo sistema moral; convicção para os que não querem ser convictos. Os que abraçam o niilismo por opção não podem ser chamados de niilistas. Na verdade, já se preocuparam com coisas demais para serem dignos de tal título. Os que nunca nem pensaram em se preocupar, os que lutam para ingressar no mercado de trabalho, os que lutam para enriquecer a todo o custo, os que querem apenas levar uma vida sossegada e educar os filhos, os que se entorpecem à noite e na manhã seguinte retornam aos seus postos sociais, os corruptos, os honestos, os vendedores, os consumidores, os assaltantes, os terceirizados... Todos esses, e muitos outros, convergem sem se dar conta e diretamente para o nada, e chegarão (am) lá muito antes que qualquer pretenso niilista.

Ao contrário do espaço físico, o saber humano não ecoa onde há só ar. O meu impulso à imortalidade é uma quimera da minha pretensão? Talvez. Ainda se não fosse, é sonho de Ícaro num céu onde o Sol vem lentamente baixando sobre as asas de cera. Ao mesmo tempo, o niilismo é outra quimera, que sumindo no ar revela o intenso desejo de finalmente viver. Viver, apesar da pós-modernidade.

O artista moralista, o artista engajado, o artista de vanguarda, ... , cada um deles adota para si uma missão. O artista niilista cria, em tese, apenas pelo prazer do ato de criar, pela necessidade de desabafar, alguma outra desculpa qualquer. Desculpas que me parecem insuficientes. Por que motivo o artista que perdeu sua fé na humanidade continua criando? Se a premissa é verdadeira, não vejo motivo algum.

Ter consciência de que tudo caminha para o nada é a melhor maneira de enxergar o mundo, evita a grande maioria das armadilhas das tentações dos diferentes discursos. Mas, ao menos na minha concepção, uma vez que se assume a consciência do nada, é impossível retornar impunemente a ele. A ignorância é a bênção que protege o ser do sofrimento. Ou de um sofrimento de ordem mais aguda. Porque o artista continua criando? Criar não garante a imortalidade, ainda mais num tempo em que sua voz dificilmente ecoará. A obra de arte não é suficiente (e talvez nada seja) para combater o vazio engolidor que domina o mundo. Ainda assim, o impulso criador não cessa. Talvez, criar seja preencher. Creio que o impulso de criação seja uma manifestação do impulso de vida, única resistência individual contra o nada. O artista que quer ser imortal tem então, ao menos chance de viver enquanto estiver vivo.


Ainda não cheguei à conclusão da possibilidade de existir, verdadeiramente, um artista niilista. Quase chego a dizer que não, mas tem algo de inquieto que mexe comigo e não me deixa dar a definitiva resposta. Sei que consegui raciocinar o bastante e entender de onde vem o impulso criador num tempo (ou numa pessoa que acredita num tempo) como o nosso, e por hora isso me basta. Mas sei que logo voltarei a refletir sobre o assunto.

4 Comments:

Blogger Babuíno Sagrado said...

emil

Nessa linha de pensamento o niilismo soa contraditório. Por que acreditar em nada e continuar vivendo? Acreditar em nada então é uma forma de acreditar em algo.

Mas será que não haviam pensado nisso quando criaram essa escola? E o verdadeiro sentido dela tenha se perdido através do tempo?

Eu até me considerei niilista durante uns tempos, hoje me considero um bicho-papão social.

8:30 AM  
Blogger Lucas said...

Tenho preguiça de ser qualquer coisa.

Emil, assista o filme A Hora do Lobo, do Bergman. Deve ser a melhor coisa já feita sobre a agonia/maldição/dom/êxtase/etc da criação artística. Não é fácil de achar, mas tem o trailer no Youtube. Procura lá Hour of the Wolf.

5:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

niilista, se mata
eu sou indiferente a isso, pra mim não chegarei a lugatr algum com essa política/filosofia de vida
sinto náuseas, não só ao ler, mas quando penso no significado da vida

8:04 AM  
Anonymous Anônimo said...

Sabe pq vc tem tempo pra ficar filosofando sobre o nada ?
Pq tem um pai e uma mãe que te dão casa, comida e conforto...
Será que eles são uns tapados também????
o que eles construiram pra vc usufruir é nada ???
Cai na real garoto....

4:33 AM  

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